sábado, 6 de junho de 2009

Coelet: viver num tempo-limite a eternidade do tempo!



Nos anos 80 Cazuza embalou toda uma geração de jovens daquela época, inclusive a mim, interpretando uma canção muito interessante, intitulada O tempo não pára. Para o Cazuza, o tempo foi um tema/uma realidade fundamental. Contrariando todas as suas mais profundas espectativas, no auge da fama, apaixonado pela vida, ele descobriu que havia contraído o vírus HIV e que lhe restavam pouco tempo.
Se a vida é essa busca desesperada para fugir à dor, para adiar o fim inevitável e ser feliz, o que fazer com o tempo, quando se descobre que resta pouco tempo? Como viver o tempo que temos nesta existência viva debaixo deste sol? Como ser feliz perante o tempo que foge e que nos consome? Este texto, é resultado de uma pregação realizada no final de 2008 em nossa Comunidade Batista Passaré em Fortaleza/CE.
Nela nos propusemos refletir as questões tempo, vida e felicidade na perspectiva da teologia bíblica do Eclesiastes. Continuaremos aqui mantendo a proposta da idéia a partir do título acima.
O Eclesiastes como nenhum outro livro da Escritura, nos convida a olhar a vida em sua mais pura e desvelada realidade. O Eclesiastes não faz o jogo do esconde-esconde nem do faz de conta em relação ao que de fato é a vida. O pregador eclesiástico, o Coelet, de maneira dramático-filosófica, desnudou a vida para seus ouvintes sem rodeios. Ele queria levá-los a crise da realidade: ‘Vejam a vida é isto aí” tédio/enfado/rotina e morte/finitude/brevidade (dois males cruéis e inevitáveis que acompanham o mortal). A morte e o tédio.
Em relação a morte, a afirmação é veemente: A vida é fugaz/passageira: vaidade: sopro, vento, fugacidade, ilusão (1.2). Sucesso, grandes obras, dinheiro, saber, poder tudo fugaz...De fato, a lembrança do sábio desaparece para sempre, como a do insensato. Bem logo tudo ficará esquecido: o sábio morre da mesma forma que o insensato 2.16. Parafraseando o Coelet em Comblin, teólogo belga radicado no Brasil, toda a geração é mortal.
Heidegger, filósofo existencialista alemão do final do século XIX, dizia que fugimos tanto da idéia da morte que quando falamos nela, dizemos que quem morre é a gente, não eu. Esquiva-se da morte no anonimato da gente.
Na verdade, sequer o céu nos contagia. Com uma boa dose de humor e verdade, do alto de sua capacidade de ver a teologia em diálogo com a realidade toda que nos cerca, Rubem Alves testemunha: “Não conheço ninguém que tenha entusiasmo com a idéia do Céu. Até mesmo os mais piedosos não querem deixar este mundo e fazem a maior força para adiar o momento da partida para o prometido lugar de delícias. Preferem ficar um pouco mais, a despeito da artrite, da úlcera, da surdez, da dentadura, da urina solta. E certos estão, pois nada melhor se pode desejar que esta terra maravilhosa, com seus perigos e amenidades”.
O segundo grande mal que acompanha a todos nós, os mortais, na leitura eclesiástica, é o mal do tédio, da rotina, a vida é tediosa, às vezes ela é de um insuportável cansaço que mais cedo ou mais tarde, a percepção desse tédio será inevitável. Como seres abertos que é o ser humano, carentes de um algo mais, aqui e acolá com uma elevada intensidade ou não, o tédio estará presente. Afirma o Coelet: a vida é enfadonha, tediosa, uma repetição monótona e dolorosa (1. 4-11) Sim, os seus dias todos são dolorosos, a sua tarefa é penosa, e até de noite ele não pode repousar. Também isto é fugaz 2.23.
Dizia Giácomo Leopardi, um dos maiores poetas da lírica italiana do século XVIII que, o tédio é a mais estéril das paixões humanas e a mais fecunda. Olhando para a realidade imóvel e cotidianamente repetitiva das estrelas, aparentemente estáticas perante nossos olhos, o Fernando Pessoa, interrogava de maneira dramático-poética essa realidade que acompanha a existência humana que se revela no tédio das coisas. Dizia ele: Tenho dó das estrelas, Luzindo há tanto tempo, Há tanto tempo, Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, um cansaço de existir, de ser, só de ser...?
Emerge destas breves leituras eclesiásticas, uma questão fundamental para a existência: Se a vida está terrivelmente marcada pela finitude e pelo tédio, que saída nos apresenta o pregador diante do tempo que Deus nos concede debaixo deste sol para que sejamos felizes? Para o pregador Coelet só existe uma saída e é aqui onde aparece o título pelo qual sugerimos nesse texto, compreendemos de antemão, ter sido a saída que o pregador percebeu para a vida, para uma vida mais feliz dentro das contigências do tempo: Viver num tempo-limite, a eternidade do tempo, ou seja, transformar cada segundo, mesmo e apesar de todos os dramas que nos cercam, num instante de felicidade. Fácil? Não! Difícil? Muito! Possível? O coelet nos convida a lutar desesperadamente por isto. De que maneira?
Para ele, a vida deve ser um instante eterno de prazer, uma passagem prazeirosa, somente possível no momento eternizado. A comida, a bebida, o amor, o instante eterno (9. 7-10).
Para isso, não existe mágica, feitiço, é coragem mesmo. A vida é um reclame para a intensidade do presente, inexoravelmente uma celebração do prazer. – Deus nunca foi anti-prazer, ao contrário, o prazer aparece como dádiva divina no gênesis - e viu Deus que era bom – apenas tão mal interpretado pela tradição cristã.
Uma tradição dualista de interpretação da Bíblia, que transformou o tempo presente em campo de luta espiritual, equívocos que puseram uma face diabólica/demoníaca a tudo que pertence ao tempo presente, exigindo do crente o abandono das coisas do mundo, como prerrogativas fundamentais da fé para a conquista do paraíso.
Fomos renunciando coisas, pior, fomos demonizando os prazeres da vida em nome de uma vida santa, oh vida santa: a bebida, a festa, a dança, o riso, o humor, a piada, o sexo, enfim se fôssemos enumerar uma lista, seria interminável, ao final sobraria apenas uma pálida lembrança do falso prazer, aquele que se aguarda para o além que não há quem queira ir...
Visto que, essa pregação tradicional encaminha o crente para viver a felicidade somente no além e a vida aqui é esse terrível convite ao abandono do mundo, deve-se acrescentar aqui mais um problema seríssimo para a experiência evangélica brasileira: fomos excluindo da nossa lista de questões práticas da fé, a luta de Jesus Cristo, isto é, o mundo histórico concreto das pessoas, do engajamento social cotidiano, da confrontação política, da participação nas questões planetárias, todas estas coisas, foram se tornando temas irrelevantes para um povo de Deus que apenas aguarda ‘feliz’ novos céus e nova terra.
Jesus Cristo jamais poderia ter pensado que fossem elementos primeiros, quando nas renúncias exigidas em torno de suas pregações, o abandono da vida presente...renunciar em sua fala, sempre esteve relacionado ao abandono de realidades funestas da existência humana, ídolos terríveis que alimentamos em nossa alma, destrutivos de nós mesmos, da vida e do outro: o egoísmo, a inveja, a arrogância, a soberba, o orgulho, o ódio, o fanatismo, a alienação, a omissão, a submissão cega, a corrupção, a chantagem, o machismo, o preconceito de todas as maneiras, a mentira em nome de um deus ou de uma verdade para manipular cabeças frágeis, enfim, este é o mundo que deve ser renunciado segundo Jesus Cristo, mas nunca um abandono do presente, uma exclusão da vida, da alegria, da festa, da celebração, do prazer, do amor, do vinho, da farra, dos amigos, da luta, do confronto, do espírito profético que aponta injustiças e opressãos aos pobres deste mundo. O eixo central da pregação de Jesus Cristo, seu projeto de Reino de Deus, está fundamentado na afirmação emblemática: Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância?.
Angelo Silésius, místico cristão, poeta e filósofo europeu do século XVII, dizia aos renunciantes da vida que, quem dentro de si mesmo, um Paraíso não for capaz de encontrar, não será capaz também de, um dia, nele entrar...Comblin, teólogo belga já citado acima radicado no Brasil, mais precisamente na paraíba, em seu excelente texto O provisório e o definitivo (1968) afirma que, o presente tem sobre o passado e o futuro a vantagem de existir, pois só o presente existe sempre.
Não existe um outro tempo para se viver a experiência do existir, senão o agora. Tudo que você puder fazer, faça-o enquanto tem forças, porque no mundo dos mortos, para onde você vai, não existe ação nem pensamento, nem ciência, nem sabedoria (9.10).
Entre o tédio e a morte, o cansaço e a finitude, o desafio do Coelet, o pregador do eclesiastes é, viver num tempo-limite, a eternidade do tempo.

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